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Apropriação cultural: o abismo entre teoria e prática


Dias atrás fiz uma postagem, a primeira do blog, sobre apropriação cultural de turbantes. A intenção desta era apenas abordar exclusivamente o uso do turbante pelos povos ancestrais europeus. Alguns entenderam o recado, outros não – cobrando uma análise sociológica brasileira e historiográfica visando a origem africana, o que não estava na proposta original, mas o problema não é este.

Há uma discussão muito grande dentro do tema “apropriação cultural”. Argumentaram nos comentários que não há problema em um branco usar turbante desde que ele entenda o que aquela peça significa para o movimento negro. No entanto, esta argumentação é falaciosa e foi previamente abordada na postagem dos turbantes: “Os movimentos têm todo direito de eleger seus símbolos. Mas não têm direito a requerer a propriedade exclusiva dos objetos elegidos para tal, principalmente quando estes já eram de uso comum da humanidade. O fato de um movimento escolher como símbolo um item – que já era de uso comum e mundial desde os primórdios das civilizações – não o transforma em sua propriedade exclusiva e tampouco dá direito a decidir quem deve ou não usá-lo.” Dizem que o uso de turbantes diminuiriam a luta do movimento negro, isto também foi abordado no decorrer do texto: “O fato de vários povos usarem este item contemporaneamente, cada um com seu significado, não anula a importância de nenhum desses significados.”

Mesmo aceitando a argumentação dos defensores da apropriação cultural, quando dizem que não há problema em usar turbante desde que saibam o que aquele adereço carrega, ainda sim, há um abismo entre a teoria tratada para a prática aplicada e podemos ver isto com o caso mais recente: Henrique, um rapaz branco que resolveu por tranças no cabelo.

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Eis o resultado:

Mesmo aceitado toda argumentativa teórica dos defensores da apropriação cultural, mesmo que usar um cabelo diferente ofenda o movimento negro, mesmo que usar um turbante ofenda o movimento negro, mesmo que pudesse usar estes adereços apenas se soubesse o seu valor de luta para o movimento negro, ainda há um abismo entre teoria e prática: alguém perguntou para Henrique se ele sabia quão valoroso era a trança para o movimento negro? Provavelmente não, ai encontramos o abismo.

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Cito novamente a frase usada na postagem dos turbantes: “Os movimentos têm todo direito de eleger seus símbolos. Mas não têm direito a requerer a propriedade exclusiva dos objetos elegidos para tal, principalmente quando estes já eram de uso comum da humanidade. O fato de um movimento escolher como símbolo um item não o transforma em sua propriedade exclusiva e tampouco dá direito a decidir quem deve ou não usá-lo.”

“Quem sofre preconceito são os negros”

Então o problema não é os brancos usarem os tais adereços, e sim os negros sofrerem preconceito por usarem. E concordo, quem sofre são os negros, então talvez seja uma boa hora para o movimento fazer uma autocrítica: ofender gratuitamente o branco que usa qualquer adereço, apropriado pelo movimento negro como símbolo de luta, diminuirá o racismo?

Turbantes: por que seu uso nunca será apropriação cultural


Contrariando as postagens de parte do movimento negro, os turbantes não surgiram apenas na África, o que não significa que é original da Europa, Ásia ou América, por um motivo óbvio: não existe apenas uma história acerca das origens dos turbantes, existem várias. Ainda hoje os turbantes são utilizados por pessoas brancas e negras e nunca poderá ser classificado como “apropriação cultural”. No entanto, podemos sim, classificar as singularidades do uso através das diversas culturas nos mais variados tempos históricos. Mas é preciso entender: turbante é um patrimônio mundial e não é propriedade cultural de nenhum grupo, sendo assim não podemos dizer que o turbante é de uso atribuído a nenhuma cultura específica. A intenção da postagem é abordar exclusivamente o uso desta peça pelos povos ancestrais europeus. As fotos que disponibilizarei contém grande valor e dá sustentação argumentativa, pois é um objeto de estudo que contextualiza diversos períodos históricos.

Analise historiográfica:

No sítio arqueológico de Cnossos, na ilha de Creta (Grécia), existem pinturas e estátuas conhecidas mundialmente, datando da Idade do Bronze (3000 a.C.), que mostram pessoas usando turbantes.

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Do mesmo modo é possível encontrar registros de figuras trajando este item na Grécia Antiga (1 100 a.C. até 146 a.C.), e Roma Antiga (Século VIII a.C), passando pelos Vikings e continuando sua história ora mais ora menos popularizado. Tradicionalmente, a Grécia Antiga abrange desde 1 100 a.C. (período posterior à invasão dórica) até à dominação romana em 146 a.C., contudo deve-se lembrar que a história da Grécia inicia-se desde o período paleolítico, perpassando a Idade do Bronze com as civilizações Cicládica (3000-2 000 a.C.), minoica (3000-1 400 a.C.) e micênica (1600-1 200 a.C.); alguns autores utilizam de outro período, o período pré-homérico (2000-1 200 a.C.), para incorporar mais um trecho histórico a Grécia Antiga.

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É notável que as origens dos turbantes são incertas e de antemão, trago-lhes o óbvio: assim como os sapatos evoluíram de uma prática cobertura dos pés para uma peça de vestuário que revela a classe e a origem da pessoa, do mesmo modo os turbantes evoluíram de uma simples cobertura de cabeça para algo que identifica as pessoas ao longo de linhas culturais, religiosas, políticas e sociais.

O turbante nada mais é do que uma tira de tecido amarrada à cabeça e dependendo de sua localização temporal e geográfica, pode-se ter diversos usos: proteção, símbolos de poder religioso, social e de riqueza, como utensílio estéticos, entre outros. Por exemplo, na Europa, por muito tempo, os turbantes foram um importante acessório dos artistas de estúdio, usados para proteger os cabelos das tintas e do pó de mármore. Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun, a pintora mais famosa do século XVIII, pintou seu autoretrato usando um turbante, por exemplo. Van Eyck, igualmente. Dürer retratou o artista Michael Wolmegut usando um turbante preto. Adam Kraft esculpiu seu autoretrato com um turbante.

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Na Europa, durante o período Medieval, os turbantes faziam parte da indumentária de homens e mulheres.

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O uso de turbantes também continuou na Europa durante o século 16.

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Turbantes foram usados por nobres homens e mulheres durante o século 17.

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Na Europa, no final dos anos 1700, o turbante deixa de ser exclusivamente uma peça de adorno dos nobres (de tecido fino, às vezes com pedrarias) e uma peça utilitária para os plebeus e serviçais europeus (de tecido bruto), para adquirir mais uma função: acessório de moda. Após a Revolução Francesa (1789-1799), Paris despontou como Capital Mundial da Moda, influenciando as tendências de vários países ao redor do mundo.

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No século 20, Paris já estava consolidada como Capital Mundial da Moda e já era referência de modernidade, moda, elegância, cultura e etiqueta para vários outros países.
O renascimento da moda dos turbantes no século 20, deve-se ao estilista francês Paul Poiret.

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Durante a Segunda Guerra Mundial assim como no período pós-guerra – quando a pobreza assolava grande parte da Europa, o turbante teve seu uso reforçado no continente. Mais do que um artigo de moda ou luxo, o item foi muito usado pelas européias para esconder os cabelos maltratados devido às condições de vida precárias. Até hoje turbantes integram indumentárias tradicionais de vários países europeus.

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Chegada dos turbantes no Brasil:

Os turbantes chegaram ao território brasileiro juntamente com os primeiros invasores europeus, no ano de 1500. Este item já era usado na Europa não somente antes, mas também durante toda Idade Média. Existem registros ilustrados de quase 400 anos antes da chegada dos portugueses ao Brasil, do uso de turbantes na Europa medieval por homens e mulheres, nobres e plebeus.Os nobres usavam turbantes de tecidos finos e adornados com pedrarias. Enquanto os plebeus e serviçais europeus usavam turbantes de tecido bruto, geralmente de cor crua, tal qual aqueles que foram, posteriormente usados pelas pessoas escravizadas no Brasil. Estes registros incluem diretamente a corte portuguesa.

Questão religiosa:

O fato de determinada religião promover um objeto – que já era de uso comum- a objeto religioso, não significa que quem continuar usando-o de maneira não religiosa, estará cometendo uma ofensa. Usar de maneira não religiosa roupas brancas, vasilhas de barro ou metal, saias/vestidos longos e rodados, turbantes, roupas com babados e rendas, búzios (que são usados por povos ribeirinhos e de regiões costeiras do mundo inteiro) e tantos outros objetos que sempre foram de uso comum, não é desrespeitar as religiões que os transformaram em objeto de culto.

Da escolha do turbante como um dos símbolos de luta e resistência dos movimentos por direitos de pessoas negras:

Os movimentos têm todo direito de eleger seus símbolos. Mas não têm direito a requerer a propriedade exclusiva dos objetos elegidos para tal, principalmente quando estes já eram de uso comum da humanidade. O fato de um movimento escolher como símbolo um item – que já era de uso comum e mundial desde os primórdios das civilizações – não o transforma em sua propriedade exclusiva e tampouco dá direito a decidir quem deve ou não usá-lo.

Da volta dos turbantes à moda:

No final dos anos 1700 na Europa além das funções de objeto de uso utilitário e adorno de nobres – com as devidas diferenças entres os dois – os turbantes ganharam também a função de acessório de moda. Assim passaram a seguir o mesmo caminho de outros acessórios de moda, indo e voltando para moda de tempos em tempos. Assim como as calças Saint Tropez (ou cintura baixa) foram moda nos anos 60, démodé nos anos 80 e início dos 90, e voltaram com força total em meados dos anos 90, tantos outros itens passam por essas variações e com o turbante não é diferente.  O fato de alguns grupos usarem como objeto religioso ou representativo, não faz com que perca suas outras funções, nem mesmo a de acessório de moda, se assim fosse, algumas religiões evangélicas poderiam reivindicar o uso das saias longas, por exemplo, que igualmente aos turbantes, entram e saem de moda.

Dos vários tipos de adornos de cabeça e do desconhecimento da maioria das pessoas:

Basta uma simples pesquisa sobre tipos de turbantes usados ao redor do mundo para entender que os modelos são muito variados e que ainda hoje são usados com diversos significados. Mesmo existindo um número enorme de modelos de turbantes, nem tudo que tem sido classificado como tal, é realmente um turbante. A maior parte das pessoas, ainda confunde turbante com laços, lenços, tira de tecido trançado ou cruzado, toucas adornadas, etc. Quanto mais tecido tem, maiores são as chances de errar a classificação. Nem todo tecido usado como adorno de cabeça será um turbante.

Conclui-se, que:

Na maioria das vezes, no Brasil, o tom mais claro de pele é herdado pela ancestralidade européia. Logo, se as civilizações ancestrais européias (inclusive portuguesas) já usavam turbantes antes do contato com outras civilizações – continuando seu uso através dos tempos – acusar uma pessoa brasileira de pele clara, de estar fazendo “apropriação cultural” ao usar um turbante, além de ser uma grande falácia, demonstra total desconhecimento histórico. Os turbantes que entram e saem da moda, não são aqueles com significado religioso (ou de luta), mas sim os que são usados como adorno, tal qual já eram usados na Europa antes da chegada dos portugueses ao Brasil. É importante ressaltar que os registros de turbantes não religiosos usados por civilizações européias, datam de épocas anteriores ao contato destas com civilizações de outros continentes. O fato de vários povos usarem este item contemporaneamente, cada um com seu significado, não anula a importância de nenhum desses significados.  Se para um povo é um importante item cultural-religioso, para outro é um importante item cultural de adorno. E como qualquer outro item de adorno, é normal que em determinados momentos esteja na moda, e em outros não. A apropriação cultural do turbante acontece, não quando pessoas – independentemente da cor da pele e/ou país de procedência, o utilizam. Mas sim, quando um determinado grupo requer para si, o uso exclusivo de uma peça que é de “propriedade” mundial. Sem dúvida, são de valor inestimável, as inúmeras heranças exclusivas deixadas pela cultura africana para a formação da cultura brasileira, mas certamente o turbante não é uma delas. O turbante é uma herança deixada da humanidade para a humanidade.

Dou creditos por grande parte da produção intelectual: Andressa Fourquet.